terça-feira, 8 de setembro de 2009

O BONDE DO FUNK AGORA É CULTURA

RUTH DE AQUINO
é diretora da sucursal de ÉPOCA no Rio de Janeiroraquino@edglobo.com.br

Mas se liga aí novinha, por favor tu não se engane. Abre as pernas e relaxa. Que esse é o Bonde do Inhame. Que esse é o Bonde do Inhame. Esse é o bonde dos cria que enfogueta as novinhas. Esse é o bonde dos cria que enfogueta as novinhas. Vai na treta do Nem que a Kátia tá também eeemmm. Larga o inhame na Silvinha.
Essa letra edificante é exemplo tosco de um funk – o ritmo oficializado na terça-feira como “manifestação cultural” no Rio de Janeiro. Na Assembleia Legislativa, o funk saiu enfim da “tutela da polícia” e passou para o campo da Cultura. Agora, é ilegal a repressão policial aos bailes.
Eu não conhecia o “Bonde do Inhame” até uma semana atrás. No engarrafamento do Túnel Rebouças, no Rio de Janeiro, um motorista sem camisa fazia ecoar o batidão pelas janelas escancaradas. O asfalto tremia. Quem tinha criança no carro despistava para não traduzir “enfoguetar as novinhas” ou “ir na treta do Nem” – chefe do tráfico da Rocinha. A letra fazia apologia do tráfico, das drogas e da pedofilia.
Antes que os amigos do funk, os deputados, os acadêmicos e os jornalistas do funk digam que sou de elite e não gosto de “som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” (“Som de preto”, de Amilcka e Chocolate), queria dizer que nada tenho contra o funk popular e inocente. Tocado sem encher o ouvido alheio.
Entendidos dizem que o funk nasceu do cruzamento da cultura pop e da música negra americana com o cancioneiro popular nacional. “Existe muito preconceito. Acham que funk é coisa de favelado e estimula violência e consumo de drogas”, diz a antropóloga Adriana Facina.
Minha manicure vive na Rocinha. É mãe de uma menina de 9 anos. Perguntei o que ela acha da lei que torna o funk um movimento cultural.
“Cultura? É obscenidade, isso sim. Aqui em casa meus filhos estão proibidos de escutar ou cantar funk. As letras são pornográficas. Fico impressionada com mãe que deixa a filha ir nos bailes, de shortinho, top, tudo de fora, sainha sem nada por baixo. No fim dos bailes, todo mundo doidão, porque tem droga livre, botam funks pesados. Tem baile de domingo pra segunda até 7 horas, como se ninguém trabalhasse.”
Quem vai reprimir, no Rio, os bailes que fazem apologia do tráfico e da pedofilia?
Queria ver os intelectuais do asfalto morando ao lado de uma quadra com o pancadão varando a madrugada. Se a elite tem direito à Lei do Silêncio, por que os pobres têm de ficar surdos?
Para proteger minha amiga, não posso publicar seu nome. Todos têm medo. Mas, não é cultural? Quem desvirtuou o funk foram os chefes dos morros, não a sociedade civil. Eles se apropriaram de um ritmo legítimo. Hoje, muitos favelados associam funk a bandidagem.
Injusto generalizar. Mas quem fala não é elite. É mãe, trabalhadora, sem coragem de apoiar publicamente a repressão aos bailes. Qual seria o resultado de um plebiscito anônimo nas favelas?
Algumas músicas, vendidas em CDs por camelôs ou tocadas nas ruas, me foram enviadas por moradores de favelas. As letras são chulas, baseadas em estribilhos. Aí vai um exemplo: "Ela vira de frente e vem assim,…Vem x…eca, vem x…eca, bem gostosinho. Ela vira de costas, ô, empina pra mim, ô e vem assim. Vem c…inho, vem… (voz de menina) Você quer meu c...? Você quer minha b…?” (repetida ad nauseam). O funk diz sofrer o preconceito que o samba já enfrentou. É sacrilégio comparar o samba com letras de mulher-fruta e créééu.
O lobby da periferia terá de recuperar a imagem do funk nas comunidades. Adianta só condenar no microfone quem incita a crimes? Os líderes do movimento precisam expurgar quem demoniza os bailes. Um dos autores da lei que tira o funk das sombras, o deputado Marcelo Freixo (PSOL) sugere que o ritmo seja “instrumento pedagógico nas escolas”. Propõe “oficinas profissionalizantes de DJs”.
Não faz sentido mesmo vetar um gosto musical. Ou fechar os olhos a um fenômeno que movimenta R$ 10 milhões por mês no Rio e gera milhares de empregos, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Mas que se instalem banheiros químicos, câmeras e isolamento acústico, que se proíbam os proibidões. Que se controlem horários. E se fiscalize o consumo.
Eu queria que inhame fosse uma raiz. Que os bondes fossem aqueles sobre trilhos. Que as novinhas continuassem a ser meninas. E que Nem não passasse de um advérbio de negação.
COMENTARIOS DOS LEITORES:

Paulo SP / São Paulo 08/09/2009 14:19 É complexo...Oi Ruth, acredito que seu texto foi oportuno sim, e concordo com muito do que você colocou (principalmente sobre o intelectual morar ao lado de um baile funk - ótimo!), porém, ainda questiono sua eficácia. Digo isso pq noto que o tom das mensagens do forum giram em torno de "é cultura/não é cultura". Não creio ser tão simples assim definir as causas desse fenômeno das periferias. Tome como exemplo o "gangsta rap" norte-americano. Se vc procucar na internet vai encontrar coisa igual aos proibidões. Há vídeo clipes que são verdadeiros filmes eróticos, onde mulheres são usadas como objetos. E vc há de concordar que a situação dos negros norte americanos é bem melhor do que a dos favelados cariocas - ao menos no que diz respeito a oportunidades. Então, será que só a omissão do estado e o oportunismo de bandidos é suficiente para gerar esse produto? E quanto aos modelos, exemplos a serem seguidos? E quanto à sociedade do espetáculo na qual estamos todos inseridos? A futilidade, mídias que gastam horas dando voz a pessoas vazias, falsos moralistas? O proibidão é um insulto, mas também é um grito de socorro. Abs
Claudia RJ / Niterói 08/09/2009 14:18 Sim é cultura. Daqui pra frente também será informação e lazer....O Funk hoje (sempre) é acusado de todos os problemas que há anos vêm se arrastando pelo Rio de Janeiro. Sabemos que grande parte dessa ojeriza, é porque as pessoas associam o ritmo ao tráfico, reclamam do alto volume das músicas até altas horas da madrugada e do seu conteúdo. Antes o funk era "fuzilado" por falar da realidade, política e situação das favelas, agora por apresentar uma linguagem obscena e vulgar. Os excessos existem sim, é preciso combatê-los, não somos funkeiros alienados e muito menos precisamos de gente passando a mão em nossa cabeça. Agora, afirmar que o funk é o grande vilão e o causador de todos os problemas do Rio, também é excessivo. Tráfico, pornografia, pedofilia, volume alto etc... existem antes do funk virar a bola da vez. É tão claro como certo, que o problema vai além disso. A grande verdade é que a maioria não tem nenhum envolvimento com nada ilícito, são pessoas responsáveis por famílias que precisam trabalhar, como qualquer ser humano idôneo que preza por seus direitos. Se o funk se encaixar nas regras dos "policamente corretos" continuará sendo perseguido, pelo simples fato de propagar a voz, cultura e diversão das favelas. Tenho lido vários depoimentos e comentários preconceituosos, isso para mim não é "discussão" sadia. A maioria sequer conhece a história e a luta da APAFUNK, apenas comentam porque odeiam o funk por si só.
ruth de aquino RJ / Rio de Janeiro 08/09/2009 12:47 Oi PauloSabe, o que a coluna despertou de repercussão e debate, o número de emails que estou recebendo, também de DJs, mostra que o texto foi oportuno. De que adianta eu começar a discutir as causas que levam jovens da periferia a adotar tal estilo musical? O problema não é a música em si - mas a apropriação deste ritmo por traficantes e bandidos, e o uso dos bailes para aliciar e corromper os mesmos jovens. Claro que não são todos, mas isso existe, e os próprios estudiosos e defensores do funk admitem. Sabemos todos quais são as grandes causas - a omissão do Estado nas comunidades carentes - a falta de perspectiva e opções de lazer de jovens - a sensação de viver na marginalidade. No Rio a prefeitura começou um processo (enfim!) semelhante ao da Colômbia, com "pacificação" das favelas, censo, títulos de propriedade, saneamento, contenção, demolição em áreas de risco ou favelas, gabarito, contas de luz, gás e tv a cabo, postos de saúde, ginásios esportivos etc etc. Mas isso não justifica que se assista de camarote a essa proliferação de bailes que incitam a crimes e não deixam o trabalhador dormir!!! Por que o rico pode chamar a polícia quando o vizinho faz barulho com uma festa? E os funkeiros se comportam como se não estivessem nem aí para o sossego alheio? Eles sabem que o morador tem medo de reclamar. É preciso sim disciplinar os bailes funk e proteger os jovens. E eu não quero ouvir essa letra no volume máximo no carro ao lado como se fosse a coisa mais normal e legal do mundo.

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