segunda-feira, 21 de setembro de 2009

kuduro, funk e rap

Angola tem uma importante produção cultural que já está se espalhando pelo mundo. Escritores como José Eduardo Agualusa e Ondjaki já estão entre os principais nomes da literatura de língua portuguesa e sendo traduzidos em vários países. Na última Bienalle em Veneza, o país teve, pela primeira vez, uma participação elogiada no pavilhão africano e Luanda já tem sua trienal de artes plásticas, cuja segunda edição será realizada em 2010, possivelmente já numa sede própria desenhada por Oscar Niemeyer, com curadoria, como a primeira, de Fernando Alvim, um dos mais destacados artistas plásticos angolanos. Mas essa produção pode ser mais facilmente apreciada no exterior do que em Luanda, onde a cena cultural ainda é extremamente limitada.A verdadeira efervescência cultural em Angola está nos musseques, onde se vara a noite em raves de kuduro, bebendo cerveja Eka e dançando enlouquecidamente até o Sol nascer. O kuduro lembra um pouco o funk carioca, com letras praticamente recitadas de forma acelerada sobre bases simples, mas de ritmo forte, só que trazendo narrativas menos agressivas, mais crônicas sociais cheias de humor do que exaltações de sexo e violência. Por muito tempo relegado aos CD players dos candongueiros (a verdadeira rede de rádio popular de Angola) e bancas de CDs dos mercados angolanos, o ritmo recentemente começou a virar mainstream, com o governo se animando a promovê-lo como "o ritmo nacional", pegando carona com o sucesso que o kuduro já começa a fazer em algumas pistas da Europa.A crítica social mais pesada fica a cargo do rap, esse ainda maldito, mas tornado poderosa arma política não partidária na voz de Mc K, um tranqüilo e simpático estudante de filosofia que mora num dos musseques mais perigosos de Luanda. Rodando a cidade em alto volume nos alto-falantes dos candongueiros, sua voz consegue romper a polarizada linha que divide as simpatias políticas dos angolanos entre MPLA e UNITA e atingir fundo a todos com uma crítica precisa e afiada não dos partidos, mas do sistema sufocante que se perpetua independentemente de quem esteja no governo. Suas letras incomodam tanto o poder que um fã foi assassinado por um integrante da guarda presidencial simplesmente por cantar uma de suas músicas.Apesar de todos os problemas, anos de sofrimento parecem terem feito dos angolanos irremediáveis otimistas. Sem dúvida para eles a maior conquista foi a chegada da paz. É grande o número de jovens bem formados que estão abandonando bons empregos na Europa e Estados Unidos, para onde foram para escapar dos anos de conflito, retornando ao país em busca de aproveitar o bom momento e ajudar a fazê-lo andar para a frente.Nástio Mosquito, um artista multimídia e agitador cultural que teve seu trabalho entre os selecionados para a última Trienalle, ele mesmo de volta a Angola depois de anos na Inglaterra e abrindo o primeiro escritório de gestão de patrocínio cultural do país, foi quem melhor traduziu o espírito que move essa geração. "Meu país tem praticamente a minha idade, não é em qualquer lugar que se pode dizer isso. Quantos anos países como o Brasil levaram para encontrar seu rumo? Angola vai encontrar o seu próprio caminho, que não é nem virar uma Europa ou uma América. Angola vai ser Angola. Se o resultado de toda essa transformação vai ser bom ou ruim eu não sei, vou ter que esperar uns 20 anos pra ver."Vai ter que dar dinheiro, branco!", gritava ainda o mais exaltado dos passageiros da van angolana enquanto continuávamos parados na estrada de lama. O motorista do candongueiro, que até ali estava preocupado apenas com o senhor que o sujou, ainda tentou colocar pressão. "Mas isso lá é maneira de dirigir?!"Ouvindo meu sotaque brasileiro dizer de forma enfática, mas educada, que não daria porra nenhuma e que a última pessoa do mundo que poderia criticar alguém por dirigir de forma descuidada - o que nem era o caso - era um motorista de candongueiro, cantados em verso e prosa como os maiores facínoras do trânsito de Luanda, quatro dos cinco passageiros desistiram da argumentação, mas o mais exaltado partiu para cima de meu carro gritando que ia quebrar tudo. Antes que ele chegasse perto, larguei a embreagem e andei uns 50 metros para trás. Foi o suficiente para ele desistir da valentia e voltar, junto com seus colegas, para o Toyota Hiace azul e branco, sem Omo, dinheiro ou desculpas.Depois de se acalmarem ainda tive que lidar com o senhor, que queria que eu lhe entregasse meus documentos e a chave do carro e fosse com ele até seu emprego dar explicações. Era quase uma ordem de prisão. Uniforme em Angola é poder ou ao menos quem os usa crê que seja. Mas valentia de angolano, sobretudo sem colegas ao redor para lhes dar confiança, é curta. Quando disse que de meu carro não sairia, mas que se ele realmente fizesse questão poderia fazer a gentileza de segui-lo até seu chefe para explicar a situação, não como obrigação, mas como um favor, ele se resignou e aceitou.Fomos então até o porto de Luanda, onde não apenas contei a história ao chefe como tive que assinar um papel confirmando-a. O senhor ainda tentou me intimidar na frente do superior, usando a condição de oficial de imigração para exigir que lhe desse meu passaporte para averiguação. Diante de meu argumento de que nem no Brasil nem em Angola sujar alguém de lama é crime ou violação de qualquer lei de imigração, e que eu estava ali fazendo um favor e não sob ordem judicial, ele acabou capitulando e se conformando apenas com um pedido de desculpas. "Então me dê mil kuanzas [cerca de 13 dólares] para lavar meu carro", ainda tentou, como se a sujeira do automóvel fosse culpa minha e não das enlameadas ruas da cidade. "Desculpe, mas vou precisar do dinheiro para lavar o meu", respondi. Entrei no carro e parti.Como bem colocou o escritor Agualusa, num e-mail de boas-vindas pouco depois de minha chegada a Angola: "Chegar em Luanda é um choque, mas depois a gente acostuma".

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