quarta-feira, 26 de julho de 2017

POETAS NEGRAS BRASILEIRAS NO DIA DA MULHER NEGRA DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE 25 DE JULHO





CONCEIÇAÕ EVARISTO

Meia lágrima

Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.

Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro. Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.

Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.

§

Vozes mulheres

A voz da minha bisavó
Ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida. A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.

A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.

A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

§

A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

§

Todas as manhãs

Todas as manhãs acoito sonhos
e acalento entre a unha e a carne
uma agudíssima dor.

Todas as manhãs tenho os punhos
sangrando e dormentes
tal é a minha lida cavando, cavando torrões de terra,
até lá, onde os homens enterram
a esperança roubada de outros homens.

Todas as manhãs junto ao nascente dia
ouço a minha voz-banzo,
âncora dos navios de nossa memória.
E acredito, acredito sim
que os nossos sonhos protegidos
pelos lençóis da noite
ao se abrirem um a um
no varal de um novo tempo
escorrem as nossas lágrimas
fertilizando toda a terra
onde negras sementes resistem
reamanhecendo esperanças em nós.

§

Para a menina

Desmancho as tranças da menina
            e os meus dedos tremem
medos nos caminhos
repartidos de seus cabelos.

Lavo o corpo da menina
e as minhas mãos tropeçam
dores nas marcas-lembranças
de um chicote traiçoeiro.

Visto a menina
e aos meus olhos
a cor de sua veste
insiste e se confunde
com o sangue que escorre
do corpo-solo de um povo.

Sonho os dias da menina
e a vida surge grata descruzando as tranças
e a veste surge farta
justa e definida
e o sangue se estanca
passeando tranqüilo
na veia de novos caminhos,
esperança.

§

Malungo, brother, irmão

No fundo do calumbé
nossas mãos ainda
espalmam cascalhos
nem ouro nem diamante
espalham enfeites
em nossos seios e dedos. Tudo se foi
mas a cobra
deixa o seu rastro
nos caminhos aonde passa
e a lesma lenta
em seu passo-arrasto
larga uma gosma dourada
que brilha no sol.

um dia antes
um dia avante
a dívida acumula
e fere o tempo tenso
da paciência gasta
de quem há muito espera.

Os homens constroem
no tempo o lastro,
laços de esperanças
que amarram e sustentam
o mastro que passa
da vida em vida.
no fundo do calumbé
nossas mãos sempre e sempre
espalmam nossas outras mãos
moldando fortalezas e esperanças,
heranças nossas divididas com você:
malungo, brother, irmão.

ELISA LUCINDA
Elisa Lucinda – Poemas

Elisa Lucinda – Poemas

    Libação – Elisa Lucinda
    Só de Sacanagem – Elisa Lucinda - com vídeo na voz da poeta

Penetração do Poema das Sete Faces

(A Carlos Drumond de Andrade)

Ele entrou em mim sem cerimônias
Meu amigo seu poema em mim se estabeleceu
Na primeira fala eu já falava como se fosse meu
O poema só existe quando pode ser do outro
Quando cabe na vida do outro
Sem serventia não há poesia não há poeta não há nada
Há apenas frases e desabafos pessoais
Me ouça, Carlos, choro toda vez que minha boca diz
A letra que eu sei que você escreveu com lágrimas
Te amo porque nunca nos vimos
E me impressiono com o estupendo conhecimento
Que temos um do outro
Carlos, me escuta
Você que dizem ter morrido
Me ressuscitou ontem à tarde
A mim a quem chamam viva
Meu coração volta a ser uma remington disposta
Aprendi outra vez com você
A ouvir o barulho das montanhas
A perceber o silêncio dos carros
Ontem decorei um poema seu
Em cinco minutos
Agora dorme, Carlos.

( Elisa Lucinda )

*

Cor-respondência

Remeta-me os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo.
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que voce tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era o seu jeito
ou de propósito
mas era bom, sempre bom
e assanhava as tardes.
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta.

( Elisa Lucinda )

*

Safena

Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.
Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões
Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate
O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.

( Elisa Lucinda )

*

Amanhecimento

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
Para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada…
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

( Elisa Lucinda )

MIRIAN ALVES
TEXTOS DE MIRIAM ALVES

Fumaça

Estou a toque de máquina
corro, louca, voo, suo
a fumaça sou eu

Estou a toque de nada
vivo, ando
como a comida envenenada
e o comido sou eu

estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doido sou eu

Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu

Amanhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu

(in Cadernos Negros n. 5, 1982)

§

Facas filadeiras

Estou sobre pontas de facas
A orgia dum tempo
apaga
meus espaços

Nas pegadas de minhas lembranças
pontas movediças
trituram
meus ossos

No lastimar das ações
mãos retesadas charqueiam
minha língua de fogo.

Na parada da brisa
firo-me em cacos de vidro
querendo arrancar de mim
velhas amarras

§

Calafrio

O sorriso gela
a porta do paraíso prometido

A tarde cobre-se de frio
grita
esconde-se atrás dos
casacos
faz esculpir aquela saudade
do lugar
jamais percorrido.

Escorrem feito sorvete
as esperanças derretidas
no ardor do querer.

(in Cadernos Negros n. 7, 1984)

§

Parto

Uma batida surda
dói ouvir
Viver viver
presa na gaiola
pássara
Já vi o infinito
fui constelação
Agora asteroide vagando
estrela cadente
dividi-me em duas
Dividida para não ser subtraída
fiquei inteira amolgada em cada pedaço
chorei porque eu nascia

(in Cadernos negros n. 25, 2002)

§

O corpo negro pelado
Miriam Alves

Um corpo de uma mulher negra nua passeando em plena avenida movimentada de um bairro em São Paulo às 23 horas e 30 minutos, entre restaurantes populares e posto de gasolina e dois prédios apartamentos residenciais. Caminhava tranquilamente sua cor ebânica que refletia o brilho, que não sei se natural ou reflexo do neon das lâmpadas penduras nos postes enfileirados dos dois lados da rua e das luzes exageradas vindas dos estabelecimentos, em frente aos quais ela desfilava segura que seu trajeto não seria interrompido pelos olhos assustados, ou atos violentos de ninguém.

Ela e eu andando em direção opostas, sua nudez exposta, contrastava com minha nudez coberta em trajes cotidianos com o complemento de um agasalho de moletom, porque àquela hora da noite o friozinho da madrugada se pronunciava. Os meus olhos se atentaram no traçado triangular perfeito desenhado por pelos pubianos fartos encaracolados tendo como tela a confluência das coxas. Ela desfilava majestosa, passos lentos na face um ar de tranquilidade e confiança, ela vindo eu indo, quando os nossos caminhos se entrecruzaram os olhares por instante se encontraram. O meu olhar refletia espanto, encanto e um traço de perplexidade, nos olhos dela certezas, tranquilidade em contraste com um leve sorrir talvez sarcástico. Não sei definir o instante foi breve e rápido como a um relâmpago cruzando os céus.

Ao me distanciar, alguns passos, eu ousei olhar para trás e vi as pernas roliças e a bunda carnuda arredonda se movendo no caminhar como ondas oceânicas de superfície, ondulando, ondulando. E assim a mulher se foi na noite ondulando sua vestimenta pele natural, e eu me fui, na noite com o meu corpo acobertado por tecidos transformados em roupas que com a justificativa de me proteger me aprisiona. Os meus pensamentos libertos ondulando interrogações inquietações com a imagem gravada daquele corpo negro mulher ondulando nudez na avenida e nem era carnaval.

Aquela imagem da mulher nua andando pela rua, não me saiu dos pensamentos, me levou a refletir sobre a representatividade do corpo negro pelado em algumas situações em que se apresenta:

        No cotidiano reservado das casas em que se despe para o encontro das confluências das coxas de um corpo no outro: corpo fêmeo em outro corpo fêmeo; corpo fêmeo em outro corpo não fêmeo, e as ondulações do bailado a caminho do êxtase e depois a mansidão.
      Na violência da exibição pública para o deleite de consumistas sexuais da carne negra erotizada banalizada, vendida comprada.
      No constrangimento que mesmo coberto por veste cotidianas é despido por olhares gulosos que implícita as intensões.
      Na insatisfação, de muitas, de ter este corpo desenhado em conformidade com a natureza dos orixás e procurar outros contornos, outros espelhos e se transformar em caricaturas.
    Na valorização sexualizada da bunda como ela não fizesse parte de todo o corpo.
     Na vitimização racista e sexista que este corpo vestido ou pelado é submetido na nossa sociedade.
      Nas verdades ocultas ou expostas que o corpo negro pelado representa.



A mulher nua andando pela rua, sem mais nem por quês, me libertou se não para sempre, pelo menos naquele instante. Naquele instante parecia ser só nos duas. A mulher nua e eu completamente vestida caminhando sentidos opostos. Uma alegoria real, verdadeira acontecida ali na paralela que me levou ao ápice de um pensamento que vinha se formando há tempos como uma tempestade de ideias que troveja, relampeja, mas não deságua.

A mulher nua tranquila em seu caminhar parecia uma entidade enviada pelo Orixá Exu, com luzes refletidas na pele noite como olhos indicando caminhos, desvelando os vários signos de palavras racistas, machistas e outras que cobrem os nossos corpos negros como vestimentas eternas e naturais.

E o relampejar o trovejar da tempestade de ideia se intensificou, os ventos formaram um rodomoinho e a chuva de palavras me encharcou desfazendo os signos de vestes palavras alheias que insistem em me vender em modelos formais congelados coisificando a literatura negra que faço. E fui ficando nua com as gotas de chuvas vogais e consoantes reluzindo outros significados, redescobrindo outros signos que resinificassem a minha verdadeira nudez.



E ao olhar-me no espelho vi a mulher nua tranquila e me veio a mente uma frase de Nelson Rodrigues: “Toda nudez será castigada.” E a mulher nua sorriu; “Não toda nudez é exuziaca ”.

.
.
.Palmares - Passado e Presente
A Relação Afetiva entre o Homem e a Mulher na Poesia dos Cadernos Negros
   
     


    Esmeralda Ribeiro

           
   

       
           
                   
   

           Segundo o historiador Décio Freitas, no Quilombo dos Palmares "a insuficiência de mulheres gerou conflitos violentos, às vezes sangrentos, em torno da posse de mulheres. Para preservar a coesão social, instituiu-se o casamento poliândrico. União da mulher com até cinco maridos, todos viviam no mesmo espaço físico, no mesmo Mocambo".
           É consensual a opinião sobre a existência de uma diferença em relação a como o homem e a mulher contemporâneos encaram a relação afetiva amorosa e, mesmo que o amor não esteja ligado exclusivamente ao casamento, a situação de escassez de mulheres é elucidativa. Podemos partir daí, dando ênfase para a situação de casamento poliândrico em Palmares, para tentar pensar como esse relacionamento afetivo amoroso mais desreprimido se refletiria hoje na poética feminina e masculina.
           A poesia é o melhor instrumento para polarizarmos entre o passado e o presente porque:
    "O poeta vê a própria interioridade na qual se reflete, retrata o mundo", afirma o escritor e jornalista Fernando Paixão.

           Relendo as poesias dos Cadernos Negros tive algumas inquietações: quem com esse passado acumulado mostra na poesia uma afetividade prazerosa? E, quem, afetivamente, desceu o "morro", isto é, quem em seus poemas não reflete a afetividade que os Palmarinos devem ter possuído? É o escritor ou a escritora negra?


           Na poética amorosa masculina é forte a imagem da sedução, da afetividade. Amor e erotismo se fundem numa coisa só:

                BENÇÃO DAS ÁGUAS

                Deveria ser pleno
                é mínimo
                cinza
                úmido
                no ápice de um feriado
                um dia nublado

                A plenitude por dentro
                desejo
                o que eu queria
                surpresa
                o sol não veio
                e ganho a benção que chove

                Deusa das águas, ela deixa o chuveiro
                e se instala na sala de minha retina
                ela e sua toalha-turbante
                perfeita sereia mesmo longe d'areia

                Que sorte eu aqui tão perto
                no meio do dia e das águas nubladas
                a sedução ao vivo
                lábios
                olhos
                a tez
                e o verdejante turbante
                coquetel de cores
                tesão por todos os poros
                no mínimo, o máximo
                domingo total
                no qual mergulhei de cabeça.
                      (Jamu Minka, in Cadernos negros 19)

           A metáfora Sereia ilustra bem o poder de sedução que a mulher exerce sobre o homem. A excitação sugere a iminência do ato sexual. Ele está disposto a se entregar de corpo e alma. Na poética masculina o desejo do "amor infinito" é colocado sem nenhum pudor no papel:

                CANTO À AMADA

                Não fosse sua boca um luar
                E seus olhos
                Cintilantes estrelas
                Não fossem suas mãos
                Perfumadas pétalas
                E teus braços
                Um leito acolhedor
                Não fosse sua vida minha vida
                E teu corpo minha inspiração
                Ainda assim te adoraria
                E te chamaria: meu amor
                Pois a ti eu pertenço
                Como a própria pele...
                     (Márcio Barbosa, in Cadernos negros 5 )

           "As oferendas", "os cantos", dão metaforicamente a sensação de que eles nunca estão sós. Para isso regam a planta do amor: para que se enraíze em seus corações:

                OFERENDA PARA A MINHA AMADA

                O vento soprou uma semente
                leve como uma pluma
                linda como uma estrela!

                E ela caiu e penetrou de mansinho
                nas terras desertas do meu coração

                No meu peito nasceu uma planta
                que está crescendo lentamente

                E todas as manhãs
                eu a rego carinhosamente
                com sonhos e atitudes

                Sinto a cada dia que passa
                que as raízes
                penetram mais fundo
                na medula do meu ser

                Levando-me a cantar com alegria
                porque é grande a magia
                que está encantando o meu viver!

                E aguardando ansioso
                o tempo da colheita
                no "sim" do teu coração

                Passo dias e noites torcendo
                que flores e frutos brotem
                para ofertá-los a ti, Vida
                     (Oubi Inaê Kibuko, in Cadernos negros 7)

            Na poética feminina negra a afetividade caminha junto com a dor. A escritora trabalha com o sentimento do "infinito enquanto dure", embora ela não se entregue de corpo e alma. A porta da emoção precisa ser aberta. Ela dificilmente cultua no poema a imagem do homem que a seduz. Se o cheiro dele agradar, ele vem e jazz... Mas a porta da emoção continua fechada, então ela o deixará escapar entre os dedos. Seria como apanhar a água do rio com as mãos:

                FLUIDA LEMBRANÇA

                No líquido do copo
                entorno a sua fluida
                lembrança.
                Bebo aos goles
                o seu doce caldo
                armazenado e curtido
                em minha memória
                e, quando depois
                me erro nos passos
                inebriada dos meus enganos
                toco o vazio de sua ausência
                percebendo, então
                que você me escorre dos sonhos
                Tal qual a baba indomável
                que da boca do bêbado sonolento
                escapa.
                      (Conceição Evaristo, in Cadernos negros 18)

    Ela impõe limites, porém o homem que conseguir ultrapassar esses limites vai encontrar uma mulher que expõe a sua solidão:

                LIMITES

                Abro as minhas portas e
                a conformidade das suas coisas vem
                numa adequação de causa e efeito.
                Fecho minhas portas e
                confusamente, as suas coisas vão
                numa inadequação de solidão e desrespeito
                Diante das inconformidades das minhas coisas.
                     (Regina Helena, in Cadernos negros 9)

           Quando o homem abre a porta da emoção - e por insensatez deixa marcas, sofrimentos, - se ele retornar é para fechar as feridas. Daí ele descobrirá que ela não havia dado todas as chaves para ele:

                ...NO REGRESSO

                No dia em que retornares
                provavelmente me encontrarás
                entre a pia e o fogão.
                Antes que tua boca te anuncie,
                procurarei retirar a gordura densa
                nas banheiras anunciadas na tevê.
                Usarei o xampu que dará
                mobilidade aos meus cabelos
                farei teatro em tua presença.
                Te convencerei de que minha disposição
                é a mesma, te envolverei de tal forma...
                farei morrer de inveja a melhor das atrizes.
                Carregarei de ternura o teu coração
                quero que me embales!
                Deixarei deitares teus lábios nos meus
                grossos e banhados em veneno doce
                farei com que bebas através deles minha alma
                e que nos consumamos os dois

                Te carregarei para o inferno
                em que minha vida transformaste.
                     (Sônia Fátima, in Cadernos negros 19)

           Há muito a pesquisar, mas na poética afetiva masculina a porta está sempre aberta, o poeta diz "ela me seduz, vou mergulhar de cabeça, vou pertencer a ela como a própria pele, vou regar o amor todos os dias", mostrando a dualidade força/fragilidade. Isso nos remete a Palmares. Os homens eram fortes enquanto guerreiros. Mas lá talvez houvesse a fragilidade afetiva porque, para ter uma mulher ao lado, eram levados a conflitos sangrentos pela pose da amada.


          

           A presença da mulher deu estabilidade social e familiar a Palmares. As condições sociais foram responsáveis pela implantação do modelo de família poliândrica. A consequência desse modelo deve ter sido, para a mulher, uma certa "liberdade amorosa", de poder estar com dois, três ou até cinco homens vivendo sob o mesmo teto. Como afirma Décio Freitas, "os homens eram obedientes à mulher, que mandava em sua vida e no trabalho".

           Concluo que essa condição possibilitou à mulher Palmarina viver uma vida de prazer relativo, apesar do estado permanente de guerra contra os senhores de escravos. A mulher Palmarina pôde escolher com qual dos parceiros ela teria os seus filhos, pôde escolher, entre os parceiros, aquele que a levaria ao desejo de na cama colar em seu corpo como tatuagem, numa harmonia de corpos, aquele que a levaria de colo para uma infinita paixão. Na afetividade amorosa era a mulher Palmarina que tinha todas as armas e também o poder de seduzir e de querer ser seduzida. Mas a poética feminina não herdou nada dessa "liberdade amorosa" de suas ancestrais nos textos. Destruíram Palmares e destruíram também seu prazer amoroso. A poética feminina não tem nada a ver com o que deve ter sido o passado histórico afetivo das mulheres Palmarinas. Agora a história é outra. O sentimento militante feminista predomina em sua poética. Ela deixa bem explícito que as portas não estão mais abertas. Seus sentimentos estão sempre em guarda. É preciso saber tocar o interfone dos sentimentos. Ela avisa ao homem que ele não encontrará uma mulher submissa e sim uma mulher que decide pelo seu próprio corpo, uma mulher que decide sobre suas vontades. Ela falará tudo isso de uma forma dura e às vezes fria, são poucos os poemas nos quais o homem a seduz. Pode-se citar uma raridade. Um poema sem título:

                Meu Zumbi
                De corpo suado
                De olhos meigos e doces
                De boca ardente...
                Nenhuma paisagem se iguala
                à visão que tenho de você
                Explosão de raça em forma de ser
                o que mais quero:
                Entrelaçar nossas peles retintas
                Me animar de vida,
                Buscar meu céu em sua terra
                Saciar minha sede de mel em seu mistério.

                Tatuar-te em meu corpo
                para ter a certeza de tê-lo
                preso-colado-filtrado em mim
                na própria pele
                rasgando a epiderme
                que nem laser apaga
                que aos poucos me rasga
                e se fixa e me marca
                num uno indivisível
                     (Lia Vieira, in Cadernos negros 15)

           No geral, a mulher desceu do "morro", porque Amor romântico não combina com feminismo. A todo momento ela tem que mostrar poeticamente que é forte, só os fortes ganham a batalha, ganham o poder. Ela não permite expor seus desejos românticos sobre uma folha de papel. Está ocorrendo uma inversão de papéis, agora os homens são escassos, são as mulheres que, metaforicamente, têm de guerrear para ter um parceiro, talvez seja por isso que, na poética feminina, a dor e solidão são retratadas constantemente. Ao mesmo tempo em que ela quer ter um parceiro, ela também quer medir forças com ele. Ela não abaixa as guardas, é um elo que não se quebra. Poeticamente são os homens que querem um relacionamento duradouro, eterno e as mulheres um amor infinito, nem que seja por um dia ou por alguns segundos.

           Para terminar: a poética masculina continua na Serra da Barriga, eles herdaram dos seus ancestrais o deleite, sentem o prazer pela amada com tanta intensidade como em Palmares. Quem sabe por ter que dividir com outros homens a atenção da mesma mulher, seu amor expresso na poesia é harmonioso, um amor na mesma sintonia, é constante a imagem de rolar na cama, chegando ao êxtase total. Amar é bom demais e por isso eles realizam, concretizam no papel, lindíssimos poemas de amor.

    ***

    Esmeralda Ribeiro é escritora, jornalista e faz parte do Quilombhoje desde 1982. Tem atuado no sentido de incentivar a participação da mulher negra na literatura. Publicou "Malungos & Milongas", conto, em 1988. Tem poemas e contos publicados em diversas antologias no Brasil e no exterior.


    Bibliografia Citada

    Cadernos Negros 5 (org. Cuti). São Paulo: Ed. dos Autores, 1982 (poemas)

    Cadernos Negros 7, 9, 13 e 15 (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984, 1986, 1990 e 1992 (poemas).

    Cadernos Negros 19 (org. Quilombhoje). São Paulo: Quilombhoje: Ed. Anita, 1996 (poemas).

    FREITAS, Décio. Palmares - a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

    PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. São Paulo: Brasiliense, 1982.

    

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*

Au Gratin

Fumo um cigarro fino
Como um palito
O calor do Rio é ridículo
Calor de chuva enrustida
Calor do céu oprimido
De inferno mar resolvido
Que não sabe se queima esse cara
Ou o assa ao ponto
Um calor filho da puta
Um calor de estufa
E eu sem nem ser judia
Sofro aos pouquinhos
Sofro esse zé pagodinho
Ardo nesse pecado que não cometi
Nesse forno onde me meti
Por uma apimentada dica
De um nordestino
Que me mostrou uma placa citada, tinhosa:
“CIDADE MARAVILHOSA”
Eu vim.

( Elisa Lucinda )

Conheça também:
Elisa Lucinda – Wikipedia

(Seleção de Fabio Rocha)

LIA VIEIRA
1. NÓS VOLÁTEIS
Lia Vieira

Billie Holliday e aquela solidão arretada,
numa noite de sábado.
O feriadão levara as pessoas.
Para disfarçar o tempo,queimou um comercial
e ligou a tevê sem o som.
Para ocupar suas idéias,
uma variação de literatura esotérica.
Nesta digressão filosófica, o teto começou a vibrar.
Atentou para o ruído e
percebeu que a libido no apartamento de cima começara.

Estavam literalmente fudendo na sua cabeça
Aqueles rangidos e gemidos ritmados
lhe despertaram desejos adormecido até então.
Seu corpo retezou-se e arqueou-se em ondas, enquanto a
dupla alienígena
contemplava a encenação.

Lá fora, a vida fervilhava, e ela
solitariamente pegava uma carona
nesse trem de fantasias.

2. ÂNSIA
Lia Vieira

Pisca a memória
Imagens de tempos remotos
E também de coisas recentes.
O ar está pesado
tem estado
No mundo lá fora há fome,
não se come.
No mundo cá dentro há cansaço.
Há um medo grande
uma coisa de susto.
Como se fosse acontecer
não brotar nunca mais.
Há algo disforme cá dentro.
loucura que explode
prestes a estilhaçar / alma de vidro.
Talvez seja a resposta que espero …
talvez seja apenas meu ego,
egocêntrico, egoísta, que,
latejante …
deseja amor.

3. CURIÓ
Lia Vieira

Ele era sempre sorriso e riso
E gargalhadas escancaradas.
Dançava samba de roda, jogava capoeira,
animava bailes.
O cabelo bem cometido sob a leve camada de óleo
Os sapatos de um engraxado absoluto,
o brilho retumbante.
A tranqüila camisa de seda.
No pescoço, a conta grossa de aço.
Simpatia e adjacências.Mútua reciprocidade.
Curió de Vila Isabel. Gostavam dele. Ele de todos.
De pé ele estava, ali na parada de ônibus:
A viatura se aproxima.
“ Abra os bolsos!Vire de costas!Mostre as mãos! “
Alguns protestos. O policial se redobrou.
“Entre na viatura¨…
Curió, o rosto anoitecido retrucou :
Nestas terras seu moço,nunca ninguém não ousou.
Nenhuma afronta sem troco.
Nem agravo sem resposta.
A lei chamou outro da lei.
Tiros, gritos, correria…
O Curió calou o canto do encanto.
Só o sussurro das asas
Em sumida revoada.
Assassinato diário de pássaros.

4. PAZ
Lia Vieira

Com os olhos fitando o horizonte,
peço PAZ.
Para que não haja profanação nas florestas
Para que não sejam aviltantes nossos salários
Para que o amor seja centro e não periferia
Para que os olhos sejam sim á compreensão
e não ao preconceito
Para que haja laços e não algemas
Para que a Liberdade seja fim e não meio
Para que haja estrelas e não mísseis

PAZ

Para que apesar da nuvem do genocídio:
Bendito seja o fruto do meu ventre.

5. MULHER DE MARINHEIRO
Lia Vieira

Não há mais fuligens nos navios
Assim como não há rolos de fumaças nas chaminés
Chegastes …
Não me trouxe sedas,não me quedei em mirra, incensos ou alecrim
para te receber.
Fui envolvida pelas histórias
de cada porto que passastes
desprezadas por certo
as infidelidades que em cada um praticastes.
Por banquete o que mais certamente aprecias
meu corpo
E dele nossos suspiros e nossos ais.
A brisa da terra firme
mantendo ela agora a guarda
roça o semblante do amado
nela antevejo o alento das marés.
Bons-dias – não fosse a folhinha a correr para frente.
Nossa vida uma só peça
braços para te receber,mãos para adeus acenar.
Passagens de idas e vindas
paisagem certa, momentos incertos.
Outra vez partirás
Te sigo até onde a vista não alcança
Volto a remexer no presente já passado
folgando relembrar suas andanças.
Mais uma vez, invento o cais …
– Porto seguro, jamais.

6. MULHER TORTURADA
Lia Vieira

Que prêmio receberão os carrascos
pela realização de sua carreira torpe ?
A mim, cabe sofrer as conseqüências em martírio
para salvar a minha ideologia.
saciar através dele
a fome de igualdade e fraternidade
no meio social a que pertenço.
NÃO SEI FAZER O JOGO.
A pressa dele em me infligir dor,
dói mas psíquica que fisicamente.
Que prepotência em querer ser
negando a razão que só a Deus pertence.
Uma visão insignificante face ao supremo poder.
Pequenez humana que mesmo em mim se traduz …
porque agora, um torpor me invade o corpo,
me isenta da dor , do açoite, do pensar,
SOU POSTA DE CARNE.
E ele em paz com sua consciência pagã.
Minha convicção, irradia meu corpo, mente, coração.
Ninguém sofre mais do que lhe é permitido sofrer.
MEU VERDUGO GOZA.
Meus olhos marejam em suprema humilhação.
NÃO HÁ TEMPO INTERIOR.
NÃO HÁ TEMPO EXTERIOR.
Só a luta satânica desigual contra Deus.
Diminuem então qualquer sensação,
no ar conhecidos perfumes
terra, vida, flor, mar
região distinta entre sem classes e sem poder
elo forte que não se romperá jamais.
NÃO FUI HERÓI.FUI GRANDE.
Não lhes dei o prêmio.
De que lhes valerá meu cadáver ?
Indiferente a platéia,saí … ilesa.

7. SOLEDAD
Lia Vieira

Busco su voz
En cada vaso de vino
por las noches como arrepentido
Qué poemas nuevos fuiste a buscar?
Camino nuevo? Sueños azul?
Busco su voz
Canto esperanza olvidada
Semillas de inmensidad
Que alumbra mi alma serena
Curtida de soledad.

8. FLORENZA
Lia Vieira

Raphael, Michelangelo, della Robbia, Cellini
Donatello, Boticelli, da Vinci.
Florenza.
Lina nueva.
Salgo a pasear con los arbores y el silencio
Hoy es el tiempo que puede ser manãna.
La calle mojada, la suave brisa
Te hacen florescer
y que florezca
en alto cielo estrellado
el amor con sus esmeros
en la alma querubin
tierna de mi bienamado.

9. L´AMOUR
Lia Vieira

Ah, l´amour
aimer n´est pas un vice
d´une revêrie d´été
Tu me rend folle
a une manière douce,
plein de vie, atroce.

** 10. ABORTO UM DIREITO SÓ MEU
Lia Vieira

Amei Gilberto, Miguel, Roberto
Arrebatadamente, sonhos de amor primeiro
E tive Lia,
Melanie,
Alex.
Amei Paulinhos ( foram dois ), Jorge, Vilela
Amores confusos e tumultuados
Delírios de amor e carne.
E tive Isabela,
Ágata,
Mel
Fui amado Steve ( meu amor canadense ),
Toni ( amor manso como o que ) e tive
Deidre,
Ayô e Romeu.
Pais e Filhos que nunca se conheceram.
Aborto … um direito só meu.

** 11. AUTO-BIOGRAFIA
Lia Vieira

Nasci grande
nasci escrevendo
Já Negra bela
Já Mulher.

Passei por mãos que me burilaram a forma
E me conservaram a essência.
Trilhei caminhos
Virei mundos
Busquei céus
Construí vidas.

Cantei cantos
Chorei desencantos
Edifiquei sonhos
Fiz revoltas
Pratiquei vida.

Ousei, questionei, debati
Encontrei na escrita
A forma, a força, feliz
E nela sobrevivi.

** 12. MÃE NEGRA
Lia Vieira

Mãe Negra
Tu tens que ser bamba,
tu és Baobá.
Não nascestes para a servidão.
Te diluíram na história
e conceber fostes
nem sempre por opção
nem sempre em “família”
mas na dura realidade,
oprimida, resistente — Mãe.
Nunca serás chamada rainha
muito menos representarás
perfil para comerciais.
Em tua trajetória seu rebento é projeto legítimo;
o triunfo de nossa alforria
que se perpetua em tua maternidade.

** 13. FIZ-ME POETA
Lia Vieira

Fiz-me poeta
por exigência da vida, das emoções, dos ideais, da raça.
Fiz-me poeta
sabendo que nem só “se finge a dor que deveras sente”
e crendo que através da poesia posso exprimir
a arte do cotidiano, vivida em cada poema marginal.

** 14. FÊMEA/MULHER
Lia Vieira

Às vezes meu coração fala
minhas mãos, estas-estão sempre
traduzindo meu pensar.
Meus olhos têm imãs
mas poucos, só poucos conseguem percebê-los.
Minhas pernas se expressam pelo
movimento
querendo da mesma forma que os pés
impedir que os detenham em seu percurso,
passando veladamente à cabeça
O ato da ação
refletidos
em palavras,
gestos,
na própria vibração
Todo meu Eu corporificado
centralizando no umbigo
a Fêmea/Mulher em constante vigília.

FEMALE/WOMAN
Lia Vieira

Sometimes my heart speaks
my hands, they are always
translating my thoughts
My eyes contain magnets
but few, only few are able
to perceive them
My legs express themselves
through movement
wanting, just as the feet,
to not be
detained on their course
covertly passing to the head
the act of action
reflected in words,
gestures,
in vibration itself
All my Self incarnate i
centralized at the navel
the Female/Woman in constant
vigil.

* Lia Vieira, poeta, graduada em Eco

SONIA FATIMA CONCEIÇÃO
Te amo

A lembrança é concreta
Teu hálito roça-me a face
O desejo
afasta
o ridículo

No suór o visco
do esperma
Na boca o gosto
do falo


Indecentes
Tuas mãos
Tateiam meu corpo


o orgasmo varre
valores, pecados



Te amo.



Sonia de Fátima da Conceição
(Cadernos Negros)
poetisa e socióloga

Araraquara - SP- Brasil


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