Bruno Dorigatti · Rio de Janeiro (RJ) · 29/11/2008 15:44 · 48 votos
Publicado originalmente no Boletim PPCor - Políticas da Cor na Educação Brasileira, abr/maio 2007.
Está é opinião da Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Conceição Evaristo a respeito dos negros na literatura brasileira. Segundo ela, "não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários". E ela cita, entre outros, Gregório de Matos, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado."O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros." Porém, acrescenta ela, "se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira", como Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil e primeiro editor de Machado de Assis, Mário de Andrade. Já entre os que assumem e escancaram a ascendência, a partir dos anos 1920, estão Lino Guedes, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Adão Ventura, Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira, não esquecendo das mulheres, como Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira.Leia a íntegra da entrevista abaixo.Ainda hoje são pouco conhecidas personalidades que fazem parte do histórico de luta da população negra no Brasil ao longo dos séculos. Na Literatura Brasileira também é possível perceber a influência de escritores negros na luta contra a discriminação?Conceição Evaristo. Sim, sem qualquer dúvida. Creio que uma leitura mais atenta de vários textos de escritores negros ao longo da literatura brasileira nos fornece essa resposta. Alguns conseguiram criar um discurso literário marcadamente opositor à mentalidade da época. Por exemplo, Caldas Barbosa (1738-1800), famoso por seus lundus, ainda no Brasil Colônia, tenta responder, por meio de versos, aos vários insultos que recebia, como o de ser descendente da “nojenta prole da rainha ginga”, dirigido contra ele pelo poeta português Bocage (1765-1805). Poetas, romancistas como Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e muitos dos escritores contemporâneos, incansavelmente, produzem obras que auxiliam e que valem mesmo como discurso contra o racismo.Quais são os autores ou obras brasileiras que a senhora destacaria em função da presença da discussão racial ou outras manifestações de luta da população negra? E que autores foram esquecidos por nossa literatura?Conceição Evaristo. O primeiro que eu destacaria seria Luiz Gama (1830-1882). Com seus poemas satíricos, aponta na sociedade da época a pretensão racista de se constituir e de se apresentar como uma sociedade branca. Cruz e Souza (1861-1898), com a sua negritude angustiada. O grande poeta simbolista do Brasil morre em estado total de miséria, esquecido pela crítica da época. E quando recuperado, é apontado como um poeta que tenta escapar de sua condição étnica – conclusão tirada a partir de certas metáforas que Cruz e Souza utilizava nas construções de seus versos. Criações importantes do poeta foram deixadas no esquecimento, ou melhor, no desconhecimento, como “Núbia” e o poema em prosa “Emparedado”, em que a voz autoral negra do poeta se faz ouvir. Referência maior talvez seja a de Lima Barreto (1881-1922). Desprezado por muito tempo pela crítica literária, mas nas últimas décadas já se encontra plenamente recuperado pelas pesquisas acadêmicas. Lima Barreto segundo o seu biógrafo Regis de Morais, denominava o espaço familiar em que vivia como “Vila Quilombo”. Ao meu ver, ele é o escritor que mais, contundentemente, coloca o dedo na ferida do racismo brasileiro. Sua obra, notadamente em Recordações do Escrivão Isaias Caminha e em Clara dos Anjos, proporciona várias discussões sobre os modos das relações raciais da sociedade brasileira. Em 1903, em seu Diário Íntimo, Lima Barreto relatava o desejo de escrever sobre a escravidão no Brasil, e a influência desse processo na nacionalidade brasileira. Em 1905, o escritor volta a registrar a mesma idéia. Queria escrever um romance que falasse da vida e do trabalho dos negros em uma fazenda. E não podemos esquecer a escritora maranhense, Maria Firmina dos Reis, (1825-1917) também muito pouco conhecida. Os compêndios tradicionais da historiografia da literatura brasileira não citam a escritora. Há, entretanto estudos que apontam Maria Firmina como a autora do primeiro romance abolicionista, Úrsula, escrito por uma mulher. Registros comprovam a presença dela em jornais maranhenses publicando poesias, contos, crônicas e também como compositora de um hino para a abolição da escravatura, segundo informações do pesquisador de literatura afro-brasileira, Profº Eduardo de Assis da UFMG.Ao longo do processo histórico e social de constituição da nossa sociedade, em muitas áreas, o negro foi invisibilizado. A senhora percebe este processo de invisibilidade do negro nas obras de Literatura Brasileira, assim como na área acadêmica? Como isso acontece?Conceição Evaristo. Se a pergunta for sobre o negro como personagem, eu me arriscaria a dizer que nesse sentido não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários. Gregório de Matos (1623-1696) já compõe uma representação da mulher africana escravizada em seus poemas. De seus versos afloram o desprezo pelos mestiços e o apetite sexual que os portugueses tinham pelas mulatas. A literatura brasileira segue ao longo do tempo difundindo estereótipos de negros em várias obras. Textos escritos no passado e na contemporaneidade repetem, revitalizam, reatualizam estereótipos tais como: o do negro Pai-João, o da Mãe-Preta, o do negro preguiçoso, libidinoso, o do negro infantilizado, o da mulher negra boa de cama, o da mulata fogosa, permissiva, etc, etc. É só atentarmos para personagens como: Pai Benedito, em Tronco do Ipê, de José de Alencar (1829-1877), infantilizado pela incompetência lingüística para articular a “língua de branco”. O mesmo estereótipo aparece na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). A personagem Casemiro, aliás, uma retomada do estereótipo do escravo fiel, aparece retratada como alguém possuidor de uma dificuldade de linguagem. Na narrativa, se lê que Casimiro mal articulava poucas palavras, e quando estava contente “aboiava”. Rita Bahiana e Bertoleza, em O Cortiço de Aluisio de Azevedo, (1857-1913) são imagens estereotipadas de mulheres negras. A primeira é desenhada como a mulata em que tudo nela é sexualizado, do corpo à voz. A segunda surge idiotizada, animalizada e “morre focinhando”, segundo a narrativa. Por sua vez, Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, (1912- 2001) representa uma mulher-natureza, incapaz de entender qualquer norma social. Nessas e outras obras da literatura brasileira, normalmente, as personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas circundantes. Se pensarmos na invisibilidade do escritor negro, temos de levantar ainda uma outra questão: a do processo de branqueamento que certos indivíduos sofrem quando circulam; quando vivem em espaços sociais tidos como “lugares de branco”. A instituição literária é lugar de uma maioria branca e do sexo masculino. O processo de branqueamento que Machado de Assis sofreu é exemplar. Desde a transfiguração de seus retratos, como a pouca circulação dos textos em que Machado traz a questão da escravidão. Por isso, esperamos com muita ansiedade um trabalho de pesquisa, feito por um professor da Federal de Minas, já citado nessa entrevista. Esse estudo pretende trazer textos jornalísticos de Machado assinado por pseudônimo, em que o fundador da Academia Brasileira de Letras, se coloca diante da questão escravocrata. Mas, os críticos literários, até hoje, optam por apontar um Machado de Assis branco. Há uma gama de escritores negros, e aqui eu estou incluindo os mestiços, que nós desconhecemos. Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil. Foi ele o primeiro editor de Machado de Assis. Paula Brito e outros trazem uma ascendência africana ou indígena que raramente aparece destacada. O modernista Mário de Andrade era mulato. Reafirmo que, se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira. Entretanto, quando pensamos na assunção dessa ascendência, como um dado para a própria escrita, nomeamos aqueles/as, cuja referência de datação se coloca a partir dos anos 20 até a contemporaneidade. São escritores/as que trazem uma escrita profundamente marcada por suas experiências de afro-descendente. Começamos por Lino Guedes que assume uma “negritude” em seus textos, mesmo que de forma lamentosa. Solano Trindade, por declamar: “negros que exploram negros não são meus irmãos”. Abdias do Nascimento, pela contundência de seu discurso poético em consonância com o seu discurso político. Adão Ventura, um dos primeiros que conheci no exercício de poetar as dores do negro mineiro. Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, poetas mineiros de agora. Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira. As mulheres, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira e outras, contistas, poetisas, romancistas, cronistas, nomes, que aparecerão com mais vigor na cena literária, quando estudiosos atentos às diversidades da cultura e da literatura brasileira se debruçarem sobre o novo. Uma geração novíssima vem despontando em Cadernos Negros, cito alguns nomes: Andréia Lisboa de Souza, Atiely Santos, Cristiane Sobral, Allan da Rosa. E não posso deixar de citar aqui o nome de Carolina Maria de Jesus que, audaciosamente, a partir de restos de papel e lixo, feriu a pretensão brasileira que procura fazer uma “assepsia” na literatura, tanto do ponto de vista da temática, como no da linguagem.Quais as contribuições, na sua opinião, que a lei 10.639/2003 pode exercer no ensino de Literatura e Língua Portuguesa na educação brasileira? Existe material didático com abordagem sobre essa questão nesta área?Conceição Evaristo. A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no ensino fundamental e médio, oficial e particular, sem dúvida alguma, abre um espaço de visibilidade aos aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afro-brasileira. É preciso forjar um reconhecimento de que as culturas africanas, aqui aportadas, são formadoras da nacionalidade brasileira e não meras contribuições. A presença do negro na cultura e no pensamento nacional extrapola o espaço da arte relacionada ao canto, à dança, à culinária. Creio que a lei 10.639/2003 proporciona, ou melhor, exige, que se tenha um olhar mais diversificado sobre literatura brasileira. Há autores e textos negros que são estudados, mas a partir de uma ótica euro-cêntrica. Procura-se, inventa-se um lado branco para esses autores, assim como para os seus trabalhos. Hoje, novos textos estão chegando ao mercado, e uma nova maneira de lidar com esses textos está sendo levada, (ainda em pequena escala, reconheço] aos professores. Uma escrita que trata dignamente o universo histórico, cultural, político e religioso negro pede e força passagem. É lógico que o mercado editorial e livreiro é impulsionado pelo lucro, pelo retorno e não pela questão ideológica, mas no momento, abre-se uma brecha. As editoras estão hoje mais propensas a investir em obras que desenvolvem temáticas relativas às culturas africanas e afro-brasileiras. Quanto à divulgação dos textos afro-brasileiros em grande escala, temos algumas novidades. Cadernos Negros – melhores poemas foi uma das obras selecionadas no vestibular da UFBA, desse ano. Anteriormente, um livro de poesia de Edimilson de Almeida e de Ricardo Aleixo, Roda do Mundo, apareceu incluído no vestibular da UFMG. Ano passado, foi o livro de Waldemar Euzébio, Achados, que foi incluído no vestibular da cidade de Montes Claros. E em 2008, o vestibular da UFMG trará o romance Ponciá Vicêncio, de minha autoria. A presença de obras como essas no vestibular, penso eu, ecoa os efeitos da 10.639. E quais as significações e quais efeitos da inclusão de um desses livros no vestibular? Várias. Uma delas, sem dúvida, é a possibilidade de ampliação do universo de leitores, entre alunos e professores.Qual a importância da Literatura Africana na Língua Portuguesa e na Literatura Brasileira?Conceição Evaristo. Creio que essa pergunta coloca dois níveis de questões distintas. Eu diria que a importância das Literaturas Africanas na Língua Portuguesa estaria na possibilidade de ampliação de sentidos da própria língua portuguesa. Os escritores africanos que herdaram da colonização portuguesa, como nós herdamos, o idioma português, fazem “maravilhas”, produzem novos efeitos estéticos com uma língua que, desde que emigrou da metrópole para as suas antigas colônias, deixou de ser só a língua de Camões. Transformou-se em uma língua que ganhou novos donos, novas marcas culturais, diversificou-se, enriqueceu-se ao misturar-se com locais falares, por onde ela aportava. Falamos, todos nós, uma mesma língua. Falamos e não falamos... E do ponto de vista da linguagem, nesse falar e não falar a mesma língua portuguesa reside, muitas vezes, o fundamento estético dos textos africanos. A segunda pergunta, talvez seja preciso inverter. Seria qual a importância da literatura brasileira nas literaturas africanas? Interessante observar que os escritores brasileiros, notadamente os modernistas, tiveram uma grande influência nas literaturas africanas de língua portuguesa. Jorge Amado, Guimarães Rosa, o poeta Manuel Bandeira e outros marcaram a escrita de escritores africanos. Há vários textos africanos que dialogam com uma escrita brasileira. Só para exemplificar, podemos pensar na escrita do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Mia Couto.tags: Rio de Janeiro RJ literatura literatura-brasileira negro negros representacao invisibilidade literatura-africana
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Visíveis, porém estereotipados
Bruno Dorigatti · Rio de Janeiro (RJ) · 29/11/2008 15:44 · 48 votos
Publicado originalmente no Boletim PPCor - Políticas da Cor na Educação Brasileira, abr/maio 2007.Está é opinião da Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Conceição Evaristo a respeito dos negros na literatura brasileira. Segundo ela, "não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários". E ela cita, entre outros, Gregório de Matos, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado."O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros." Porém, acrescenta ela, "se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira", como Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil e primeiro editor de Machado de Assis, Mário de Andrade. Já entre os que assumem e escancaram a ascendência, a partir dos anos 1920, estão Lino Guedes, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Adão Ventura, Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira, não esquecendo das mulheres, como Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira.Leia a íntegra da entrevista abaixo.Ainda hoje são pouco conhecidas personalidades que fazem parte do histórico de luta da população negra no Brasil ao longo dos séculos. Na Literatura Brasileira também é possível perceber a influência de escritores negros na luta contra a discriminação?Conceição Evaristo. Sim, sem qualquer dúvida. Creio que uma leitura mais atenta de vários textos de escritores negros ao longo da literatura brasileira nos fornece essa resposta. Alguns conseguiram criar um discurso literário marcadamente opositor à mentalidade da época. Por exemplo, Caldas Barbosa (1738-1800), famoso por seus lundus, ainda no Brasil Colônia, tenta responder, por meio de versos, aos vários insultos que recebia, como o de ser descendente da “nojenta prole da rainha ginga”, dirigido contra ele pelo poeta português Bocage (1765-1805). Poetas, romancistas como Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e muitos dos escritores contemporâneos, incansavelmente, produzem obras que auxiliam e que valem mesmo como discurso contra o racismo.Quais são os autores ou obras brasileiras que a senhora destacaria em função da presença da discussão racial ou outras manifestações de luta da população negra? E que autores foram esquecidos por nossa literatura?Conceição Evaristo. O primeiro que eu destacaria seria Luiz Gama (1830-1882). Com seus poemas satíricos, aponta na sociedade da época a pretensão racista de se constituir e de se apresentar como uma sociedade branca. Cruz e Souza (1861-1898), com a sua negritude angustiada. O grande poeta simbolista do Brasil morre em estado total de miséria, esquecido pela crítica da época. E quando recuperado, é apontado como um poeta que tenta escapar de sua condição étnica – conclusão tirada a partir de certas metáforas que Cruz e Souza utilizava nas construções de seus versos. Criações importantes do poeta foram deixadas no esquecimento, ou melhor, no desconhecimento, como “Núbia” e o poema em prosa “Emparedado”, em que a voz autoral negra do poeta se faz ouvir. Referência maior talvez seja a de Lima Barreto (1881-1922). Desprezado por muito tempo pela crítica literária, mas nas últimas décadas já se encontra plenamente recuperado pelas pesquisas acadêmicas. Lima Barreto segundo o seu biógrafo Regis de Morais, denominava o espaço familiar em que vivia como “Vila Quilombo”. Ao meu ver, ele é o escritor que mais, contundentemente, coloca o dedo na ferida do racismo brasileiro. Sua obra, notadamente em Recordações do Escrivão Isaias Caminha e em Clara dos Anjos, proporciona várias discussões sobre os modos das relações raciais da sociedade brasileira. Em 1903, em seu Diário Íntimo, Lima Barreto relatava o desejo de escrever sobre a escravidão no Brasil, e a influência desse processo na nacionalidade brasileira. Em 1905, o escritor volta a registrar a mesma idéia. Queria escrever um romance que falasse da vida e do trabalho dos negros em uma fazenda. E não podemos esquecer a escritora maranhense, Maria Firmina dos Reis, (1825-1917) também muito pouco conhecida. Os compêndios tradicionais da historiografia da literatura brasileira não citam a escritora. Há, entretanto estudos que apontam Maria Firmina como a autora do primeiro romance abolicionista, Úrsula, escrito por uma mulher. Registros comprovam a presença dela em jornais maranhenses publicando poesias, contos, crônicas e também como compositora de um hino para a abolição da escravatura, segundo informações do pesquisador de literatura afro-brasileira, Profº Eduardo de Assis da UFMG.Ao longo do processo histórico e social de constituição da nossa sociedade, em muitas áreas, o negro foi invisibilizado. A senhora percebe este processo de invisibilidade do negro nas obras de Literatura Brasileira, assim como na área acadêmica? Como isso acontece?Conceição Evaristo. Se a pergunta for sobre o negro como personagem, eu me arriscaria a dizer que nesse sentido não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários. Gregório de Matos (1623-1696) já compõe uma representação da mulher africana escravizada em seus poemas. De seus versos afloram o desprezo pelos mestiços e o apetite sexual que os portugueses tinham pelas mulatas. A literatura brasileira segue ao longo do tempo difundindo estereótipos de negros em várias obras. Textos escritos no passado e na contemporaneidade repetem, revitalizam, reatualizam estereótipos tais como: o do negro Pai-João, o da Mãe-Preta, o do negro preguiçoso, libidinoso, o do negro infantilizado, o da mulher negra boa de cama, o da mulata fogosa, permissiva, etc, etc. É só atentarmos para personagens como: Pai Benedito, em Tronco do Ipê, de José de Alencar (1829-1877), infantilizado pela incompetência lingüística para articular a “língua de branco”. O mesmo estereótipo aparece na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). A personagem Casemiro, aliás, uma retomada do estereótipo do escravo fiel, aparece retratada como alguém possuidor de uma dificuldade de linguagem. Na narrativa, se lê que Casimiro mal articulava poucas palavras, e quando estava contente “aboiava”. Rita Bahiana e Bertoleza, em O Cortiço de Aluisio de Azevedo, (1857-1913) são imagens estereotipadas de mulheres negras. A primeira é desenhada como a mulata em que tudo nela é sexualizado, do corpo à voz. A segunda surge idiotizada, animalizada e “morre focinhando”, segundo a narrativa. Por sua vez, Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, (1912- 2001) representa uma mulher-natureza, incapaz de entender qualquer norma social. Nessas e outras obras da literatura brasileira, normalmente, as personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas circundantes. Se pensarmos na invisibilidade do escritor negro, temos de levantar ainda uma outra questão: a do processo de branqueamento que certos indivíduos sofrem quando circulam; quando vivem em espaços sociais tidos como “lugares de branco”. A instituição literária é lugar de uma maioria branca e do sexo masculino. O processo de branqueamento que Machado de Assis sofreu é exemplar. Desde a transfiguração de seus retratos, como a pouca circulação dos textos em que Machado traz a questão da escravidão. Por isso, esperamos com muita ansiedade um trabalho de pesquisa, feito por um professor da Federal de Minas, já citado nessa entrevista. Esse estudo pretende trazer textos jornalísticos de Machado assinado por pseudônimo, em que o fundador da Academia Brasileira de Letras, se coloca diante da questão escravocrata. Mas, os críticos literários, até hoje, optam por apontar um Machado de Assis branco. Há uma gama de escritores negros, e aqui eu estou incluindo os mestiços, que nós desconhecemos. Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil. Foi ele o primeiro editor de Machado de Assis. Paula Brito e outros trazem uma ascendência africana ou indígena que raramente aparece destacada. O modernista Mário de Andrade era mulato. Reafirmo que, se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira. Entretanto, quando pensamos na assunção dessa ascendência, como um dado para a própria escrita, nomeamos aqueles/as, cuja referência de datação se coloca a partir dos anos 20 até a contemporaneidade. São escritores/as que trazem uma escrita profundamente marcada por suas experiências de afro-descendente. Começamos por Lino Guedes que assume uma “negritude” em seus textos, mesmo que de forma lamentosa. Solano Trindade, por declamar: “negros que exploram negros não são meus irmãos”. Abdias do Nascimento, pela contundência de seu discurso poético em consonância com o seu discurso político. Adão Ventura, um dos primeiros que conheci no exercício de poetar as dores do negro mineiro. Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, poetas mineiros de agora. Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira. As mulheres, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira e outras, contistas, poetisas, romancistas, cronistas, nomes, que aparecerão com mais vigor na cena literária, quando estudiosos atentos às diversidades da cultura e da literatura brasileira se debruçarem sobre o novo. Uma geração novíssima vem despontando em Cadernos Negros, cito alguns nomes: Andréia Lisboa de Souza, Atiely Santos, Cristiane Sobral, Allan da Rosa. E não posso deixar de citar aqui o nome de Carolina Maria de Jesus que, audaciosamente, a partir de restos de papel e lixo, feriu a pretensão brasileira que procura fazer uma “assepsia” na literatura, tanto do ponto de vista da temática, como no da linguagem.Quais as contribuições, na sua opinião, que a lei 10.639/2003 pode exercer no ensino de Literatura e Língua Portuguesa na educação brasileira? Existe material didático com abordagem sobre essa questão nesta área?Conceição Evaristo. A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no ensino fundamental e médio, oficial e particular, sem dúvida alguma, abre um espaço de visibilidade aos aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afro-brasileira. É preciso forjar um reconhecimento de que as culturas africanas, aqui aportadas, são formadoras da nacionalidade brasileira e não meras contribuições. A presença do negro na cultura e no pensamento nacional extrapola o espaço da arte relacionada ao canto, à dança, à culinária. Creio que a lei 10.639/2003 proporciona, ou melhor, exige, que se tenha um olhar mais diversificado sobre literatura brasileira. Há autores e textos negros que são estudados, mas a partir de uma ótica euro-cêntrica. Procura-se, inventa-se um lado branco para esses autores, assim como para os seus trabalhos. Hoje, novos textos estão chegando ao mercado, e uma nova maneira de lidar com esses textos está sendo levada, (ainda em pequena escala, reconheço] aos professores. Uma escrita que trata dignamente o universo histórico, cultural, político e religioso negro pede e força passagem. É lógico que o mercado editorial e livreiro é impulsionado pelo lucro, pelo retorno e não pela questão ideológica, mas no momento, abre-se uma brecha. As editoras estão hoje mais propensas a investir em obras que desenvolvem temáticas relativas às culturas africanas e afro-brasileiras. Quanto à divulgação dos textos afro-brasileiros em grande escala, temos algumas novidades. Cadernos Negros – melhores poemas foi uma das obras selecionadas no vestibular da UFBA, desse ano. Anteriormente, um livro de poesia de Edimilson de Almeida e de Ricardo Aleixo, Roda do Mundo, apareceu incluído no vestibular da UFMG. Ano passado, foi o livro de Waldemar Euzébio, Achados, que foi incluído no vestibular da cidade de Montes Claros. E em 2008, o vestibular da UFMG trará o romance Ponciá Vicêncio, de minha autoria. A presença de obras como essas no vestibular, penso eu, ecoa os efeitos da 10.639. E quais as significações e quais efeitos da inclusão de um desses livros no vestibular? Várias. Uma delas, sem dúvida, é a possibilidade de ampliação do universo de leitores, entre alunos e professores.Qual a importância da Literatura Africana na Língua Portuguesa e na Literatura Brasileira?Conceição Evaristo. Creio que essa pergunta coloca dois níveis de questões distintas. Eu diria que a importância das Literaturas Africanas na Língua Portuguesa estaria na possibilidade de ampliação de sentidos da própria língua portuguesa. Os escritores africanos que herdaram da colonização portuguesa, como nós herdamos, o idioma português, fazem “maravilhas”, produzem novos efeitos estéticos com uma língua que, desde que emigrou da metrópole para as suas antigas colônias, deixou de ser só a língua de Camões. Transformou-se em uma língua que ganhou novos donos, novas marcas culturais, diversificou-se, enriqueceu-se ao misturar-se com locais falares, por onde ela aportava. Falamos, todos nós, uma mesma língua. Falamos e não falamos... E do ponto de vista da linguagem, nesse falar e não falar a mesma língua portuguesa reside, muitas vezes, o fundamento estético dos textos africanos. A segunda pergunta, talvez seja preciso inverter. Seria qual a importância da literatura brasileira nas literaturas africanas? Interessante observar que os escritores brasileiros, notadamente os modernistas, tiveram uma grande influência nas literaturas africanas de língua portuguesa. Jorge Amado, Guimarães Rosa, o poeta Manuel Bandeira e outros marcaram a escrita de escritores africanos. Há vários textos africanos que dialogam com uma escrita brasileira. Só para exemplificar, podemos pensar na escrita do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Mia Couto.tags: Rio de Janeiro RJ literatura literatura-brasileira negro negros representacao invisibilidade literatura-africana
Visíveis, porém estereotipados
Bruno Dorigatti · Rio de Janeiro (RJ) · 29/11/2008 15:44 · 48 votos
Publicado originalmente no Boletim PPCor - Políticas da Cor na Educação Brasileira, abr/maio 2007.Está é opinião da Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Conceição Evaristo a respeito dos negros na literatura brasileira. Segundo ela, "não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários". E ela cita, entre outros, Gregório de Matos, José de Alencar, Graciliano Ramos, Jorge Amado."O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros." Porém, acrescenta ela, "se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira", como Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil e primeiro editor de Machado de Assis, Mário de Andrade. Já entre os que assumem e escancaram a ascendência, a partir dos anos 1920, estão Lino Guedes, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Adão Ventura, Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira, não esquecendo das mulheres, como Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira.Leia a íntegra da entrevista abaixo.Ainda hoje são pouco conhecidas personalidades que fazem parte do histórico de luta da população negra no Brasil ao longo dos séculos. Na Literatura Brasileira também é possível perceber a influência de escritores negros na luta contra a discriminação?Conceição Evaristo. Sim, sem qualquer dúvida. Creio que uma leitura mais atenta de vários textos de escritores negros ao longo da literatura brasileira nos fornece essa resposta. Alguns conseguiram criar um discurso literário marcadamente opositor à mentalidade da época. Por exemplo, Caldas Barbosa (1738-1800), famoso por seus lundus, ainda no Brasil Colônia, tenta responder, por meio de versos, aos vários insultos que recebia, como o de ser descendente da “nojenta prole da rainha ginga”, dirigido contra ele pelo poeta português Bocage (1765-1805). Poetas, romancistas como Luiz Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade e muitos dos escritores contemporâneos, incansavelmente, produzem obras que auxiliam e que valem mesmo como discurso contra o racismo.Quais são os autores ou obras brasileiras que a senhora destacaria em função da presença da discussão racial ou outras manifestações de luta da população negra? E que autores foram esquecidos por nossa literatura?Conceição Evaristo. O primeiro que eu destacaria seria Luiz Gama (1830-1882). Com seus poemas satíricos, aponta na sociedade da época a pretensão racista de se constituir e de se apresentar como uma sociedade branca. Cruz e Souza (1861-1898), com a sua negritude angustiada. O grande poeta simbolista do Brasil morre em estado total de miséria, esquecido pela crítica da época. E quando recuperado, é apontado como um poeta que tenta escapar de sua condição étnica – conclusão tirada a partir de certas metáforas que Cruz e Souza utilizava nas construções de seus versos. Criações importantes do poeta foram deixadas no esquecimento, ou melhor, no desconhecimento, como “Núbia” e o poema em prosa “Emparedado”, em que a voz autoral negra do poeta se faz ouvir. Referência maior talvez seja a de Lima Barreto (1881-1922). Desprezado por muito tempo pela crítica literária, mas nas últimas décadas já se encontra plenamente recuperado pelas pesquisas acadêmicas. Lima Barreto segundo o seu biógrafo Regis de Morais, denominava o espaço familiar em que vivia como “Vila Quilombo”. Ao meu ver, ele é o escritor que mais, contundentemente, coloca o dedo na ferida do racismo brasileiro. Sua obra, notadamente em Recordações do Escrivão Isaias Caminha e em Clara dos Anjos, proporciona várias discussões sobre os modos das relações raciais da sociedade brasileira. Em 1903, em seu Diário Íntimo, Lima Barreto relatava o desejo de escrever sobre a escravidão no Brasil, e a influência desse processo na nacionalidade brasileira. Em 1905, o escritor volta a registrar a mesma idéia. Queria escrever um romance que falasse da vida e do trabalho dos negros em uma fazenda. E não podemos esquecer a escritora maranhense, Maria Firmina dos Reis, (1825-1917) também muito pouco conhecida. Os compêndios tradicionais da historiografia da literatura brasileira não citam a escritora. Há, entretanto estudos que apontam Maria Firmina como a autora do primeiro romance abolicionista, Úrsula, escrito por uma mulher. Registros comprovam a presença dela em jornais maranhenses publicando poesias, contos, crônicas e também como compositora de um hino para a abolição da escravatura, segundo informações do pesquisador de literatura afro-brasileira, Profº Eduardo de Assis da UFMG.Ao longo do processo histórico e social de constituição da nossa sociedade, em muitas áreas, o negro foi invisibilizado. A senhora percebe este processo de invisibilidade do negro nas obras de Literatura Brasileira, assim como na área acadêmica? Como isso acontece?Conceição Evaristo. Se a pergunta for sobre o negro como personagem, eu me arriscaria a dizer que nesse sentido não pesa uma invisibilidade sobre o negro, mas sim estereotipia. A literatura brasileira está repleta de personagens negras, tanto no verso, como na prosa. O que há é uma estereotipia do negro nos textos literários. Gregório de Matos (1623-1696) já compõe uma representação da mulher africana escravizada em seus poemas. De seus versos afloram o desprezo pelos mestiços e o apetite sexual que os portugueses tinham pelas mulatas. A literatura brasileira segue ao longo do tempo difundindo estereótipos de negros em várias obras. Textos escritos no passado e na contemporaneidade repetem, revitalizam, reatualizam estereótipos tais como: o do negro Pai-João, o da Mãe-Preta, o do negro preguiçoso, libidinoso, o do negro infantilizado, o da mulher negra boa de cama, o da mulata fogosa, permissiva, etc, etc. É só atentarmos para personagens como: Pai Benedito, em Tronco do Ipê, de José de Alencar (1829-1877), infantilizado pela incompetência lingüística para articular a “língua de branco”. O mesmo estereótipo aparece na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos (1892-1953). A personagem Casemiro, aliás, uma retomada do estereótipo do escravo fiel, aparece retratada como alguém possuidor de uma dificuldade de linguagem. Na narrativa, se lê que Casimiro mal articulava poucas palavras, e quando estava contente “aboiava”. Rita Bahiana e Bertoleza, em O Cortiço de Aluisio de Azevedo, (1857-1913) são imagens estereotipadas de mulheres negras. A primeira é desenhada como a mulata em que tudo nela é sexualizado, do corpo à voz. A segunda surge idiotizada, animalizada e “morre focinhando”, segundo a narrativa. Por sua vez, Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, (1912- 2001) representa uma mulher-natureza, incapaz de entender qualquer norma social. Nessas e outras obras da literatura brasileira, normalmente, as personagens negras surgem estereotipadas em concordância com a maneira como o negro é percebido pela sociedade. Não há uma ausência do negro e da cultura negra nos textos literários brasileiros. O que existe é uma representação deprimente sobre nós negros. Nesse sentido, é preciso pensar que a cultura dominante tem o poder de se representar e de representar as outras culturas circundantes. Se pensarmos na invisibilidade do escritor negro, temos de levantar ainda uma outra questão: a do processo de branqueamento que certos indivíduos sofrem quando circulam; quando vivem em espaços sociais tidos como “lugares de branco”. A instituição literária é lugar de uma maioria branca e do sexo masculino. O processo de branqueamento que Machado de Assis sofreu é exemplar. Desde a transfiguração de seus retratos, como a pouca circulação dos textos em que Machado traz a questão da escravidão. Por isso, esperamos com muita ansiedade um trabalho de pesquisa, feito por um professor da Federal de Minas, já citado nessa entrevista. Esse estudo pretende trazer textos jornalísticos de Machado assinado por pseudônimo, em que o fundador da Academia Brasileira de Letras, se coloca diante da questão escravocrata. Mas, os críticos literários, até hoje, optam por apontar um Machado de Assis branco. Há uma gama de escritores negros, e aqui eu estou incluindo os mestiços, que nós desconhecemos. Castro Alves, Manuel da Silva Alvarenga, Gonçalves Dias, Teixeira e Souza – autor do primeiro romance brasileiro –, Gonçalves Crespo, a poetisa Auta de Souza, Paula Brito, poeta, contista, novelista, tradutor e iniciador do movimento editorial no Brasil. Foi ele o primeiro editor de Machado de Assis. Paula Brito e outros trazem uma ascendência africana ou indígena que raramente aparece destacada. O modernista Mário de Andrade era mulato. Reafirmo que, se procurarmos somente a afro-descedência, vários autores tiveram papel marcante na literatura brasileira. Entretanto, quando pensamos na assunção dessa ascendência, como um dado para a própria escrita, nomeamos aqueles/as, cuja referência de datação se coloca a partir dos anos 20 até a contemporaneidade. São escritores/as que trazem uma escrita profundamente marcada por suas experiências de afro-descendente. Começamos por Lino Guedes que assume uma “negritude” em seus textos, mesmo que de forma lamentosa. Solano Trindade, por declamar: “negros que exploram negros não são meus irmãos”. Abdias do Nascimento, pela contundência de seu discurso poético em consonância com o seu discurso político. Adão Ventura, um dos primeiros que conheci no exercício de poetar as dores do negro mineiro. Edimilson de Almeida, Ricardo Aleixo, Waldemar Euzébio, poetas mineiros de agora. Carlos Assunção, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Cuti, Oliveira Silveira, Marcio Barbosa, Jamu Minka, Oubi Inaê Kibuco, José Carlos Limeira, Landê Onawale, Semog (Luis Gomes), Salgado Maranhão, Nei Lopes, dentre outros, contistas, poetas e também estudiosos, pesquisadores da cultura afro-brasileira. As mulheres, Geni Guimarães, Miriam Alves, Esmeralda Ribeiro, Ana Cruz, Lia Vieira, Mãe Beata de Yemonjá, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Maria Helena Vargas da Silveira e outras, contistas, poetisas, romancistas, cronistas, nomes, que aparecerão com mais vigor na cena literária, quando estudiosos atentos às diversidades da cultura e da literatura brasileira se debruçarem sobre o novo. Uma geração novíssima vem despontando em Cadernos Negros, cito alguns nomes: Andréia Lisboa de Souza, Atiely Santos, Cristiane Sobral, Allan da Rosa. E não posso deixar de citar aqui o nome de Carolina Maria de Jesus que, audaciosamente, a partir de restos de papel e lixo, feriu a pretensão brasileira que procura fazer uma “assepsia” na literatura, tanto do ponto de vista da temática, como no da linguagem.Quais as contribuições, na sua opinião, que a lei 10.639/2003 pode exercer no ensino de Literatura e Língua Portuguesa na educação brasileira? Existe material didático com abordagem sobre essa questão nesta área?Conceição Evaristo. A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no ensino fundamental e médio, oficial e particular, sem dúvida alguma, abre um espaço de visibilidade aos aspectos poucos difundidos das culturas africanas e afro-brasileira. É preciso forjar um reconhecimento de que as culturas africanas, aqui aportadas, são formadoras da nacionalidade brasileira e não meras contribuições. A presença do negro na cultura e no pensamento nacional extrapola o espaço da arte relacionada ao canto, à dança, à culinária. Creio que a lei 10.639/2003 proporciona, ou melhor, exige, que se tenha um olhar mais diversificado sobre literatura brasileira. Há autores e textos negros que são estudados, mas a partir de uma ótica euro-cêntrica. Procura-se, inventa-se um lado branco para esses autores, assim como para os seus trabalhos. Hoje, novos textos estão chegando ao mercado, e uma nova maneira de lidar com esses textos está sendo levada, (ainda em pequena escala, reconheço] aos professores. Uma escrita que trata dignamente o universo histórico, cultural, político e religioso negro pede e força passagem. É lógico que o mercado editorial e livreiro é impulsionado pelo lucro, pelo retorno e não pela questão ideológica, mas no momento, abre-se uma brecha. As editoras estão hoje mais propensas a investir em obras que desenvolvem temáticas relativas às culturas africanas e afro-brasileiras. Quanto à divulgação dos textos afro-brasileiros em grande escala, temos algumas novidades. Cadernos Negros – melhores poemas foi uma das obras selecionadas no vestibular da UFBA, desse ano. Anteriormente, um livro de poesia de Edimilson de Almeida e de Ricardo Aleixo, Roda do Mundo, apareceu incluído no vestibular da UFMG. Ano passado, foi o livro de Waldemar Euzébio, Achados, que foi incluído no vestibular da cidade de Montes Claros. E em 2008, o vestibular da UFMG trará o romance Ponciá Vicêncio, de minha autoria. A presença de obras como essas no vestibular, penso eu, ecoa os efeitos da 10.639. E quais as significações e quais efeitos da inclusão de um desses livros no vestibular? Várias. Uma delas, sem dúvida, é a possibilidade de ampliação do universo de leitores, entre alunos e professores.Qual a importância da Literatura Africana na Língua Portuguesa e na Literatura Brasileira?Conceição Evaristo. Creio que essa pergunta coloca dois níveis de questões distintas. Eu diria que a importância das Literaturas Africanas na Língua Portuguesa estaria na possibilidade de ampliação de sentidos da própria língua portuguesa. Os escritores africanos que herdaram da colonização portuguesa, como nós herdamos, o idioma português, fazem “maravilhas”, produzem novos efeitos estéticos com uma língua que, desde que emigrou da metrópole para as suas antigas colônias, deixou de ser só a língua de Camões. Transformou-se em uma língua que ganhou novos donos, novas marcas culturais, diversificou-se, enriqueceu-se ao misturar-se com locais falares, por onde ela aportava. Falamos, todos nós, uma mesma língua. Falamos e não falamos... E do ponto de vista da linguagem, nesse falar e não falar a mesma língua portuguesa reside, muitas vezes, o fundamento estético dos textos africanos. A segunda pergunta, talvez seja preciso inverter. Seria qual a importância da literatura brasileira nas literaturas africanas? Interessante observar que os escritores brasileiros, notadamente os modernistas, tiveram uma grande influência nas literaturas africanas de língua portuguesa. Jorge Amado, Guimarães Rosa, o poeta Manuel Bandeira e outros marcaram a escrita de escritores africanos. Há vários textos africanos que dialogam com uma escrita brasileira. Só para exemplificar, podemos pensar na escrita do angolano Luandino Vieira e do moçambicano Mia Couto.tags: Rio de Janeiro RJ literatura literatura-brasileira negro negros representacao invisibilidade literatura-africana
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